Hoje publico um texto de uma grande amiga que regressou da Guiné, Isilda Simões, não ela não foi de férias, mas é cooperante, leva alguma coisa do que sabe e em troca de tudo isso dá-nos estes relatos vividos e sentidos tão belos, leiam até ao fim porque vale a pena.
Beijinhos e abraços de bom fim de semana.
"Cheguei na madrugada de sábado e ainda ando a fazer o "jet leg" mais o emocional que o físico, o que, me é sempre menos fácil. Acho sempre que, nestas missões recebo mais lições do que as que dou (se é que eu vou para dar lições...). Assim eu as saiba colher como merecem! Bissau, diz quem sabe, está irreconhecível: estradas esburacadas, falhas de luz e de água. Não existe politica para nada: saúde, Educação, habitação...o que quer que seja. Como é possível?COMO? é a minha interrogação constante. A cidade velha, aquelas casas lindissimas, as enormes varandas, tudo tão desprezado! A sério! O porto, cheio de recordações é um depósito de navios velhos que ninguém retira. O quartel, o mausoléu de Amilcar Cabral, a sua estátua no chão à espera de ser transportada para a rotunda do aeroporto, uma indignidade!As minhas emoções são um baralhanço. Voltarei? Quererei voltar? Serei capaz de por aqui andar a fazer de conta que nada vi, que nada sei...Veremos... Só sei que cada vez agradeço mais e todos os dias ao Universo a àgua, a luz ali à mão, a comida na mesa, a cama fofinha, a bonita paisagem. Como sou abençoada... Fui à Formosa, nos Bijagós. Conheci-a pela mão (ou antes pela moto4) do Manecas, da Sábado Vaz, do carismático Bernardo, apreciei a galinha di terra, o peixinho a saltar , o caldo de mancarra, da Julieta, o sumo de caju, de cabacera, de onhon (não sei como se escreve): Primária, selvagem, linda, cheia de mistérios, tradições, contradições, lugares estranhos. Situações inimagináveis: aulas à sombra do poilão, carteiras em canas de bambu presas umas às outras por "fibras" de àrvores. Muitas vezes nem latrinas havia. Transportes? Assistencia médica? Nada. Esperam, muitas vezes vários dias à borda do mar que a canoa passe para os levar a Bissau, à "civilização", ao médico, aos departamentos do estado. Que vidas! Que situações... Que heróis e heroínas! Que grandezas de alma! E sempre, mas sempre, aqueles sorrisos envolventes, os olhos que pedem sem nada pedirem.. a coragem um pouco tímida, o sentido de partilha manifestado naquele Guineense já idoso que, logo à minha chegada me pagou o pequeno almoço, porque a "padeira de Bissau" não tinha troco para me dar ou naquele rapaz que "na minha ora di bai" teve a coragem de me abordar para me pedir que não chorasse... que assim não os ajudava... que limpasse as lágrimas... ou ainda naquele miúdo a quem convidei para almoçar e que não quiz pedir um prato só para si, porque o que eu tinha dava para os dois. Bijagós e uma saída para Quelimane e Biombo onde visitei uma "maternidade" que uma amiga portuguesa conseguiu criar e manter (bem gostaria de aprender com ela) foram as minhas unicas saídas. Por várias razões: O trabalho era muito absorvente. Nesta missão não tinha carro e também não me senti capaz de alugar um. Bissau é um caldo de países e de povos: Mauritânea, Senegal, Líbano, India, China, Portugal, França, Alemanha e...advinhem... Guineenses :-). Parece que cada um conduz como no seu país de origem, além de que os buracos também ditam a regra!Os "toca-toca" ou os candonga não oferecem condições, não por ter que me misturar com o cacarejar das galinhas ou os berros dos cabritos. O problema é que travões não existem e, de quando em quando lá vão uns quantos meter-se com os cajueiros, as mangueiras, os fruta-pão, as "papaeiras" ou o poilão. E a questão é: se calho num daqueles espaços a que eles chamam sagrados e portanto intransitáveis? Que me aconteceria?:-) :-) :-) Já no fim, conheci jovens e menos jovens extraordinários. Retiram os dias das suas férias para irem para lá como voluntários, como aquela médica italiana que foi ensinar higiene e cuidados primários ou a Joana com quem caminhámos de tabanca em tabanca, debaixo de um sol tórrido para ver a evolução das escolas que andam a construir , no interior da ilha Formosa e da ilha de Nago. Que garra!Que corações! A pensão da D. Berta, aquela velhinha que me entoava baixinho canções de saudade de Cabo Verde estava prenhe deles! Ela que um dia, quando lhe quis pagar a minha canja de ostras porque naquela noite o calor apertava e o apetite desapertava e recusei os filetes de tamboril (ai se fosse agora...) me respondeu no seu sotaque caboverdeano "na minha casa ninguém paga sopa. Eu até dou para o hospital!"Indigentes? Apenas nas vestes. Na alma, NUNCA! Depois de tudo isto, precisarei de dizer que as comunicações eram fracas e que o pouco acesso que tinha á NEt era para resolver questões profissionais? Foi uma honra trabalhar com a Tiniguena, conhecer a dinãmica, a sensibilidade para a protecção e conservação da natureza, para a preservação dos sabores e saberes, a garra e mente aberta dos seus responsáveis, o carinho e atenções que me dispensaram. Apreciar o longo trajecto que fizeram, o que ainda querem fazer... Danadinha, aquela equipa! Não há ninguém na Guiné que não conheça esta ONG e até no aeroporto bastou referir esse nome para ter logo um grande sorriso e uma passagem aberta, quando na alfandega me perguntaram onde comprara aquele morinho (a nossa pichorra) que trazia como prenda para uma das minha anjinhas... Sabem tão bem quem lhes faz bem! A "minha" equipa, aquelas meninas sempre a puxar por mim, a questionarem-me a ajudarem a encontrar soluções, a refutarem algumas, a oferecerem-me os deliciosos bolinhos de farinha de mandioca ainda morninhos. As ostras grelhadas no quintal da Augusta. As conversas com o Pai dela, um gentleman! A paciencia do Raul a mostar-me a cooperativa que criara e onde o ensino vai desde a pré ao final do liceu, o CIFAP, onde foi lançado trágicamente lançado o último óbus na guerra de 98-99 mas onde agora se ministram os mais variados cursos técnico-profissionais. Como diria o Malato: Já fui tão feliz na Guiné...sim, mas também em Timor-Leste...em Cabo Verde...e até no cantinho da minha sala virada para o mar recordando estes lugares, partilhando convosco esta escrita e minimizando a saudade a visualizar no google estas paragens.
As potencialidades da Guiné, de Timor, de Cabo Verde e de certeza de outros lugares que ainda não conheço são incontáveis, faltam mais Tiniguenas e Rauis com o seu exemplo de disciplina, empenho, dedicação, e sobretudo seriedade e rigor. Enfim, precisam de reconquistar a sua auto-estima. Há que ter orgulho no povo que são e pensar que, tal como nós são a principal solução. Há que sentir o pulsar das gentes. E se pulsam... Há que, sobretudo os governantes, respeitarem o hino nacional da Guiné "ramos do mesmo tronco/olhos na mesma luz/esta é a força da nossa união/cantem o mar e a terra/a madrugada e o sol/que a nossa luta fecundou/ Perguntei há pouco: quererei voltar? Será que ainda me restam dúvidas? E vocês, duvidam?"
Eu aqui respondo à Isilda, não duvido e sei que ela vai voltar, e se não for a Timor, Cabo Verde, Guiné, Filipinas, será a outro lado do mundo em que estejam a precisar dela, que necessitem do seu apoio, porque ela é luz, estrela, emoção, saudade, ela é o pão para a boca, é tão bom ouvi-la, estar com ela, e eu estou cheia de saudadinhas.